terça-feira, 27 de março de 2012

ALBERTO CAEIRO




A Manhã Raia A manhã raia. Não: a manhã não raia.
A manhã é uma coisa abstracta, está, não é uma coisa.
Começamos a ver o sol, a esta hora, aqui.
Se o sol matutino dando nas árvores é belo,
É tão belo se chamarmos à manhã «Começarmos a ver o sol»
Como o é se lhe chamarmos a manhã,
Por isso se não há vantagem em por nomes errados às coisas,
Devemos nunca lhes por nomes alguns.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

quinta-feira, 22 de março de 2012

VESTE DE NUVEM EM FRAGMENTOS


Antes de abrir a boca mire-se num
plantel  fenomênico de esculturas:
corpo de seda azul em lençóis de veludo
outono  de enganos  num breve caleidoscópio
folhas soltas  em viés de vento fecundo
turbilhão  de gotas nuas aglutinadas
na garupa de bolhas ciganas  no pináculo
da montanha esmeralda  fosforescente
e siga as vestes estivais no caminho de névoa lilás
qual encontro de pergaminhos  camuflados
em corredor noturno que  arrepiam membros
andarilhos  em  simulacro de imagens
vultos  em arquivo celeste simultâneos
pés de papiro em círculo

provocam  encontro  de rastro sincrônico
relâmpagos talentosos ardem em toda eternidade
eco e fala :
_ sente o espírito imortal do amor
 chuva com a cor imensa cuspindo
desejo dentro do fogo  e  ar...
vestes  descartáveis encobrem coisas mortas
enquanto um corpo de homem arde num dorso
lábios de azul  lazuli e olhos de algodão
regurgitam pedregulhos beijados por flores de água
em cascata de braços que dão forma
à proteção ancestral que as mãos cultivam.

(Célia Abila)

MAURICE BLANCHOT

 
Palavras-chave: poesia; subjetividade; visualidade.
[...] a essência da imagem é estar toda fora, sem intimidade,
e, no entanto, mais inacessível e misteriosa
do que o pensamento do foro íntimo; sem significação,
mas invocando a profundidade de todo sentido
possível; irrevelada e todavia manifesta, tendo essa
presença-ausência que faz a atração e o fascínio das
Sereias          
                 (BLANCHOT, 1998).

sexta-feira, 9 de março de 2012

ATEMPORAL



                                                     ÁRVORE  - TARUMÃ


ATEMPORAL


O dia tem mil horas levando toras
folhas vergam costas  em  casta de obreiras
da  lida em fila , ao relento, companheiras,
numa  vigília constante a todo instante,
na  terra de feras com os pés gigantes:
 corpo  de cabra, cabeça de leão,
cauda  de dragão;  mitologia, ficção.

O dia passa e  radiante pisca os olhos
ao tempo feito de imagens, pensamentos;
mão na  testa, contente, bafo quente,
lembra  o frescor , odor e cor da manhã;
fazendo  manha à sombra de um  Tarumã,
feliz , colhendo uma flor  que só florisse;
quimera ,  marcar as horas entre as eras.

 (Célia Abila)





CINZEIRO DE ORQUÍDEA


                            
                              árvore - Cinzeiro


CINZEIRO DE ORQUÍDEA


Cinzeiro  de orquídea,
sua  fronte garatuja
cerze a clareira 
de amarelo e  cinza ,
onde  codorna e coruja
mapeIam rota.

Orquídea  lunífera,
expande o branco instante;
adorna cipó com tucho,
raíz e humo
em barco de landi;
luxo  implume.
 (Célia Abila)

domingo, 4 de março de 2012

RAINER MARIA RILKE

ELEGIAS DE DUÍNO (PRIMEIRA ELEGIA)

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face - a quem furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos - talvez pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
uma viola d'amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vem
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tua quase as invejas - essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser - nascimento supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O que pede essa voz? A ansiada libertação
da aparência de injustiça que às vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
à rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medroas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. - Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações - que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.

RAINER MARIA RILKE - do livro Elegias de Duíno, primeira elegia.
Tradução de Dora Ferreira da Silva.

LINGUAGEM


                                                                     FOTO: Maria Célia Abila

LINGUAGEM

Esta vontade de verdade
nos  leva  crer:
que a linguagem do fogo é a chispa,
a linguagem  do ar é o eco
com olhos enlouquecidos de fumaça.

Esta vontade de verdade
nos leva a guardar a letra
de louça em cristaleira,
porque cremos na eternidade,
mas o jade se parte,
vive nos seres e é talvez 
balbucio  de calor ou frio,
mal entendido
do início em anúncio.



Nas pedras que vibram habitadas
de energia ou gênio.
a  terra  é a coisa mais estável
do mundo. Mas os olhos
da pedra pesam tentando
acordar os outros,

A geografia da verdade
encontra
um rio de mil braços;
papoulas explodem
como crânios humanos,
tentam  acordar a terra
continuando  a emprestar
o fogo para o incêndio
dos elementos burilados.
                          
Célia Abila - Antologia: Poetas de Sampa (organizado por: Delmo Fonseca -
Sapere Editora - 2012)